Se você nunca leu Mia Couto, providencie! Sua prosa é poesia líquida e fluida. Um regato de água fresca e corrediça que faz cócegas por entre os dedos dos pés de quem nela se sentar à beira : passa um seixo rolando, uma alga a boiar, um mergulhão, um lambari-de-rabo vermelho e, de repente, uma poesia de Mia Couto. Sua prosa é um campo repleto de minas terrestres de poesia. Você vai andando e, de súbito, pisa numa mina escondida nas linhas de sua prosa, e, BUM, detona um pequeno poema de Mia Couto. Pode ser um parágrafo inteiro, ou uma frase, ou uma única palavra - Mia Couto é exímio em criar neologismos que são poemas de uma única palavra.
Mia Couto é moçambicano, biólogo e escritor. Autodefine-se : “Sou um branco que é africano; um ateu não praticante; um poeta que escreve em prosa; um homem com nome de mulher; um cientista que tem poucas certezas sobre a ciência; um escritor em terra de oralidade”.
Sobre Deus, Mia Couto diz : “assim esteve deus em minha vida: primeiro, ausente; depois, desaparecido!"
E também escreveu o poema abaixo.
Avesso bíblico
No início,
já havia tudo.
Mas Deus era cego
e, perante tanto tudo,
o que ele viu foi o Nada.
Deus tocou a água
e acreditou ter criado o oceano.
Tocou o chão
e pensou que a terra nascia sob os seus pés.
E quando a si mesmo se tocou
ele se achou o centro do Universo.
E se julgou divino.
Estava criado o Homem.
No início,
já havia tudo.
Mas Deus era cego
e, perante tanto tudo,
o que ele viu foi o Nada.
Deus tocou a água
e acreditou ter criado o oceano.
Tocou o chão
e pensou que a terra nascia sob os seus pés.
E quando a si mesmo se tocou
ele se achou o centro do Universo.
E se julgou divino.
Estava criado o Homem.