Rubens abre a geladeira e pega o penúltimo latão de 550 ml no congelador cuja porta não se fecha de todo dado o acúmulo de gelo - um grotão siberiano, o congelador de Rubens - e anota mentalmente que precisa descongelá-lo.
Urge-lhe a vontade de mijar. A velha bexiga, companheira de todas as horas, há tempos não é mais heróico dique, mas gasto e lasso odre de couro craquelé. Rubens vai e se alivia ali mesmo, no tanque de lavar roupas da área de serviço contígua. O saco gela e se contrai ao contato com o inox frio do tanque.
Rubens sabe que leu, e a memória lhe sussura aos ouvidos ter sido no livro "A Insustentável Leveza do Ser", do Kundera, que os médicos da antiga Tchecoslováquia urinavam nas pias de seus consultórios; ou, ao menos, o personagem-médico de Kundera assim procedia. Rubens lembra por lembrar, lembra porque não controla seus fluxos de reminiscências. Nunca precisou do aval e/ou inspiração kunderianos para mijar no tanque. Mijara, por vezes, nos tempos de uma de suas faculdades, junto ao outros bebuns, na pia do banheiro detrás da cantina do Centro de Vivência da Filô, onde cursou tempo de Química - um único vaso era pouco para as noitadas movidas a cerveja morna e barata, e Ira! e Ramones. Rubens também, mais raro, em noites de tempestades regidas pela batuta de Thor, mija da sacada de seu apartamento no asfalto da rua.
Enquanto mija no tanque, Rubens olha para a cidade através das grandes vidraças basculantes da área de serviço. O ar, comumente empoeirado e fuliginoso, hoje limpo por chuva forte, deixa a cidade se mostrar em mais detalhes. Rubens está com seus óculos de leitura - 1,5 grau de vergência. Está empenhado na releitura de "Estorvo", do Chico; empenhado em descobrir por que gostara tanto do livro em sua primeira leitura, há duas ou mais décadas.
Sob as lentes para perto de Rubens, os prédios, as árvores, as ruas e as avenidas da cidade, ao longe, se embaciam; porém, cada uma de suas luzes mais fulguram. Sejam as luzes dos postes, as dos automóveis, as das janelas dos apartamentos, as de alerta no topo dos arranha-céus e mesmo as do solitário teco-teco, cada uma delas explode em várias, cada uma pipoca em uma roseta luminosa, cada uma se espalha como num espocar silencioso de fogos de artifício.
Ainda esvaziando a bexiga, Rubens se lembra das aulas de Química Analítica, dos sais que, submetidos ao calor duma chama de acetileno, calcinados feito bruxas na Inquisição, liberavam seus espíritos multicores; os mesmo sais que são misturados à pólvora dos fogos de artifício : sódio, amarelo-alaranjado; potássio, violeta-pálido; cálcio, vermelho-alaranjado; estrôncio, vermelho-sangue; bário; verde esmeralda; cobre; azul-esverdeado.
Olhadas através das lentes de Rubens, as luzes tornam a madrugada numa virada de Ano-Novo, numa noite de revéilon.
Rubens não gosta de noites de Ano-Novo. Mas gosta de fogos de artifício. Gosta dos fogos de artifício desapegados de quaisquer simbolismos. Gosta dos fogos de artifício coisa em si : pichações de elétrons excitados e no cio, tão-somente; crias travessas do boi-tatá com o fogo-fátuo, nada mais.
Rubens desiste de retomar a leitura de "Estorvo", para sempre; amanhã mesmo o devolverá à biblioteca.
Mas não tira os óculos de leitura e vai para a sacada do apartamento com o latão. Passará a madrugada a ver fogos de artifício.