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Channel: A Marreta do Azarão
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Paraninfo Azarado (Ou : Superbonder, Não Saia De Casa Sem Ela)

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O apelido Azarão - que hoje considero uma honraria de batalha, uma condecoração de guerra - me foi dado pelo meu grande amigo Fernandão, que, sempre confuso das palavras, usou erroneamente o significado do termo com o qual me alcunhou.
Parecera-lhe, por ocasião do início de nossa longa amizade, nunca ter conhecido alguém tão azarado quanto eu, um azarado tão grande, um azarão; a seu ver, aumentativo de azarado. Na verdade, azarão tem significado praticamente oposto : no turfe, é aquele cavalo pelo qual ninguém dá nada, um pangaré, e que, de vez em quando, muito de vez em quando, surpreende e fatura o páreo. Azarão seria um azarado que, às vezes, dá sorte.
Mas gostei do apelido, afeiçoei-me a ele. Tanto que hoje, das quatro ou cinco que possuo, o Azarão é minha personalidade favorita. O Azarão, verdade seja dita, nunca foi para-raios de grandes azares, de grandes desgraças; sempre foi magneto daqueles pequenos azares cotidianos. O Azarão é aquele cara em cujo prato cai a pedra do feijão, em quem o carro joga a água empoçada da chuva, em cuja cabeça o passarinho acerta a bosta, essas pequenas adversidades.
O Azarão é um elemental zombeteiro que habita em mim, um Saci íntimo e pessoal.
Contudo, devo admitir que, dessa época de maior convivência com o Fernandão para cá, o Azarão tem me dado trégua, não tenho tido mais tantos azares, achei mesmo que ele houvesse se aposentado. Até ontem...
De tempos em tempos, sou escolhido como paraninfo por alguma turma de 3º ano do ensino médio; de tempos em tempos, mesmo, coisa equivalente ao intervalo entre uma passagem e outra do cometa Haley. Pois o cometa passou esse ano e lá fui eu, a pegar carona em sua cauda, ver a via-láctea, estrada tão bonita, brincar de esconde-esconde numa nebulosa.
A cerimônia foi ontem, e tudo corria bem. O coordenador passou para me pegar no horário previsto, o trânsito estava aceitável apesar da chuva que despencava; chuva que, diziam as más línguas já presentes no local do evento, era decorrente do fato de eu ter aceito o convite, me disposto a participar de um evento social.
É que sou, muitas vezes, classificado de antissocial. Não é verdade. Isso é coisa de umas e outras invejosas, despeitadas, recalcadas, de tesão recolhido e encruado etc. Não sou antissocial, nada tenho contra, só não tenho, também, nada a favor. Não é que eu não goste de pessoas, só me sinto melhor quando elas não estão por perto.
Voltando. Chegamos ao local do evento, um espaço localizado em um shopping da cidade, o West Shopping (morra de inveja, Leitinho), com sua imponente West Tower, o World Trade Center do interior paulista, isso segundo um primo meu, o Leitinho, para quem esse shopping é o maior emprendimento econômico e arquitetônico da cidade, uma figura impagável, o Leitinho.
Carro estacionado, saí. Meu primeiro passo já foi em falso, o pé virou. Torci o tornozelo? Pior, muito pior. A sola do sapato, a do pé direito, se soltou, despregou-se quase que por inteiro. Eu levantava o pé e a sola se abria feito uma boca desdentada a escarnecer de mim.
Não havia dúvidas : era o Azarão de volta à ativa. 
E não tinha como, era uma coisa patética de se ver, aquela sola balançando. Não havia como eu adentrar o recinto com aquela coisa mole. Estava mesmo prestes a desistir do evento, estava quase dizendo ao coordenador que outro professor me substituísse.
Foi nessa hora de agrura que me lembrei de outra máxima de meu amigo Fernandão, o maior filósofo moderno de todas as eras : "Só pode ser praga de biscate!", dizia ele quando algum infortúnio se abatia  sobre sua cabeça. E bem que poderia ser isso mesmo.
Quando da minha escolha para paraninfo, uma fulaninha, a evidenciar ainda mais a sua já pública e notória falta de ética, não só profissional como de qualquer outro tipo, questionou, junto à sala, o democrático pleito, tentou, mostrando que é puro discurso, puro vômito de papagaio de pirata, demover a sala de sua sábia decisão sobre a minha pessoa. Fulaninha quereria, talvez, uma vez que mendiga emocional das mais miseráveis que já conheci, o posto de paraninfo para si, ou para algum outro dos coleguinhas de sua turma, todos igualmente falsos, dissimulados e insidiosos feito ela. Chegou até, escrota e mau-caráter até a medula, a dizer que eu daria uma de tratante, que aceitaria o convite e os deixaria na mão, na hora da cerimônia.
Acontece que sala que escolhe o Azarão para paraninfo não é qualquer coisa, não. É de especial estirpe, é de superior cepa, não cai em lábias canalhas de fulaninha. Mantiveram a escolha.
A lembrança do ensinamento de meu amigo Fernandão me deu novos ânimos. Era por essa e por outras que eu não poderia sucumbir. Ainda mais em tal cenário, ainda mais à sombra da West Tower, palco da definitiva e frankmillírica peleja entre um Bruce Wayne sexagenário e um Duas-Caras redivivo; bem a calhar, o Duas-Caras.
Decidi : capitular frente ao carma de Murphy, eu aceito, resigno-me em minha pequenez perante ao Universo, mas cair por praga de bisca, jamais. Alguma solução eu acharia, ou me seria apontada. Alguma luz me viria. E ela veio : na forma de uma voz grossa, muito mais que a minha, quase que de um barítono. E antes que digam que foi a voz de deus, já vos mando tomar no cu. Minha salvação se pronunciou na forma de uma mulher macho, paraíba sim senhor, uma sapatão de respeito - adoro as sapatas, depois disso, mais ainda.
Como disse, era um shopping, e a minha salvadora estava a fumar em frente a uma das lojas, só ouvi o vozeirão : - Ô, meu, vai ali no mercado e compra superbonder, ela cola tudo.
Sim, havia um grande mercado às minhas costas. Acredito que tenha titubeado um pouco em relação ao conselho da sapata. Foi a vez do meu coordenador me socorrer, vai lá, disse, sapata entende disso. E era verdade. Quem entende mais de 44 bico largo que uma sapata?
Comprei a superbonder, passei na sola do sapato, calcei para pressionar, esperei dois ou três minutos e presto : a sola estava de volta ao seu lugar, coladíssima. 
Observando a tudo que ficou, quando levantei e ensaiei os primeiros e tímidos passos, ainda temeroso de que a sola pudesse novamente se soltar, a sapata me chegou por trás, deu-me um tapinha nas costas (que quase me desloca o ombro, mas tudo bem) e perguntou : Colou? Pããããta que o pariu se colou. Salvou o meu rabo. Agradeci-lhe e fui para o recinto, pisando de leve, como quem pisa em ovos, como quem pisa nos próprios ovos, e tudo deu certo, transcorreu tudo nos conformes.
A sala teve o paraninfo que escolheu e eu, a satisfação de ter sido escolhido e honrado meu compromisso. Tive até uma grata surpresa ao final, que pretendo contar aqui numa continuação dessa postagem, talvez sob o título Paraninfo Sortudo (Ou : o Azarão Nessa Frescura).
Dar-se-á, amanhã, o baile de formatura, ao qual comparecerei na certa. E com o mesmo par de sapatos. O único que tenho. Diferente dos tênis, os quais possuo em profusão, em exagero : dois pares. Dessa vez, no entanto, macaco cada vez mais velho que sou, irei prevenido, carregarei ao bolso um milagroso e providencial tubo de superbonder; doravante, será mais um item indispensável em meu cinto de utilidades, um verdadeiro amuleto contra pragas de bisca e que tais. 
Obrigado, meninos, obrigado!

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