05:23h da manhã. Ele sai da loja de conveniência com um latão de cerveja, o seu pão líquido de cada dia, e o vai tomando pelo caminho.
Só a dose elefantina de café - tomada em casa - não basta para ele encarar o nascer do novo mesmo dia e do mesmo velho sol, ambos plenos de estupidez.
O café o desperta; o álcool dá-lhe certa dose de conformismo para que possa seguir com o inútil porquê de ter despertado. O café bate; o álcool assopra.
Começa a atravessar a velha ponte metálica por sobre o rio emparedado pelos lados da avenida. À sua frente, quase ao meio da ponte, um sujeito de meia idade, semicalvo, de burguesa barriga e vestido como quem se encaminha para uma partida de tênis leva pelas coleiras dois simulacros de cachorros; numa das mãos do sujeito, um saquinho plástico a conter a merda recolhida por ele do chão de um dos cachorros, ou dos dois; um saquinho plástico, pelo jeitão do sujeito, biodegradável.
Saem, Ele e o sujeito, praticamente juntos da ponte e ficam lado a lado na calçada por alguns instantes, aguardando uma folga no fluxo do tráfego para atravessarem a rua.
O sujeito olha para Ele e nota a cerveja em sua mão.
- Já tomando uma? Tá animado, hein… começando cedo”, diz o sujeito, com um risinho de cu no canto de boca, num tom não de simples observação, sim de ironia barata, reprovação e pretensa superioridade moral; coisa de cara que tem o pinto pequeno.
- Pois é - diz Ele - eu, cinco e pouco da manhã, já tomando “uma”; você passeando com dois animais com caras de bobo, ainda que mais vivazes que a sua, que muito vagamente lembram dois cachorros e catando a merda que eles espalham pelo chão. De fato, nós dois temos sérios problemas.
Como também os têm, ele segue pensando em seu caminho, o velho viúvo que levantou às quatro da manhã para varrer e lavar a calçada; como também os têm os frequentadores matutinos das academias, correndo quilômetros em esteiras e, depois, indo de carro à padaria a alguns quarteirões de suas casas; como também os têm o catador de latinhas, a vasculhar as lixeiras de bares e restaurantes na esperança de que a noite tenha lhe deixado alguma gorjeta; como também os têm a velha de cabeleira desgrenhada e psicodélica que serve o café da manhã para o seu orfanato de gatos baldios; como também os têm a gorda que salta da van intermunicipal para ir passar o seu dia atrás do balcão de uma loja de tintas, a sua rotina sem nenhuma cor.
Só não os têm a puta. Alquebrada pelo duro expediente, abrindo e passando pelo estreito portão de ferro de acesso à casa de fundos em que mora. Que toma um banho, que faz uma ducha higiênica, que faz um gargarejo com antisséptico. Que vai dormir o justo sono dos injustiçados.