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Channel: A Marreta do Azarão
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O Vírus em Mim (2)

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Madrugada de sábado para domingo. Quase quatro horas. Ele se programara para ir deitar às duas, duas e meia, mais tardar. Seus intestinos, no entanto, lhe chamaram à função, ele levou um livro junto e acabou lendo uns três ou quatro capítulos. Não achou o livro ruim, mas sabe que não retomará a sua leitura. Sua especialidade nos últimos tempos : deixar os livros pela metade. Já tendo sabotado a sua programação, resolveu tomar uma última vodka-tônica, terminar de assistir a uma apresentação do Premeditando o Breque, no Sesc Pinheiros.
E essa bem poderia ser a introdução de mais um pequeno conto noturno, de mais um fracasso de Rubens. Mas não.
Quase quatro horas e meu filho abriu a porta que separa a sala do corredor que leva aos quartos e falou que achava que estava quente, que estava com febre. Ele que reclamara, durante o dia, de um desconforto na garganta. O nariz também escorria um pouco.
Tempos normais, nada de preocupante. Um resfriado comum, uma infecção de garganta. Antitérmico para o resfriado e para a infecção, caso viral; antitérmico e antibiótico, se bacteriana. Tempos de Peste Chinesa, os alarmes todos dispararam.
Medi a temperatura. 38,2º C. Em si, não chega a preocupar. Na razão dela poder ser, sim. Dei trinta gotas de dipirona e falei para ele ir se deitar. Logo, o remédio faria efeito. Pediu que eu deitasse com ele enquanto isso. Deitei-me e esperei ele dormir de novo. Em cerca de trinta minutos, ele estava com as faces frescas de novo.
Voltamos às aulas presenciais desde o começo de agosto, eu e meu filho de 12 anos. 
Eu uso máscara o tempo todo, passo álcool nas mãos regularmente, mantenho distância de todos; porém, a escola pública em que eu leciono não tem a mínima estrutura para seguir os protocolos básicos de segurança. Não possui pessoal de limpeza suficiente para a higienização antes das entradas, durante o intervalo e na troca de turnos (são apenas duas moças para limpar uma escola com vinte salas de aulas funcionando pela manhã, vinte à tarde e quatorze à noite). Não há sequer suficiente material de limpeza - o Estado só manda nova remessa em todo dia 30 do mês, acabe quando acabar. João Doria Calcinha Apertada ordenou que todos nós (os que já tivéssemos tomado as duas doses da vacina) voltássemos. Mas não fornece o mínimo para que a volta seja segura.
A escola em que meu filho estuda, da rede particular, tem pessoal, material de limpeza e equipamento para uma adequada higienização das entradas, intervalos e troca de turnos; porém, meu filho, tenho certeza, apesar das recomendações diárias, não mantém distância de nada. Até em brigas tem se metido nos últimos dias.
Dadas as considerações acima, acredito que tanto um quanto o outro possa ter se infectado com algo e trazido esse algo para casa.
Findo o efeito do antitérmico, a temperatura dele, ao longo do dia de ontem, ficou oscilando entre os 37,5 e 38º C. Não administrei remédio durante o dia, deixei o corpo dele brigando contra a temperatura. Antes de se deitar, estava em 37,2º C. Dei vinte gotas da dipirona só para garantir que a febre não subisse durante a madrugada. Garantir a ele um sono mais tranquilo. E a mim também.
Aconteceu que, ainda ontem, pouco depois do almoço, minha garganta também começou a raspar, meu nariz a escorrer e registrei 37,4º C de temperatura por volta das três da tarde. Antes de ir me deitar, ela continuava neste patamar. Também tomei umas tantas gotas de dipirona.
Ficara resolvido que nem eu nem ele iríamos à escola no dia seguinte, hoje. Procuramos médico e fizemos o exame para a peste chinesa. Minha esposa não está a sentir nada, nenhum sintoma; mesmo assim, também fez o exame.
O médico mediu minha pressão, minha temperatura (37,6º C), auscultou meus pulmões. Inquiriu sobre comorbidades, remédios de uso contínuo, alergia a algum fármaco e, finalmente, perguntou se eu havia tomado a vacina e qual fora. Não fez cara de pânico quando disse que tomara a vacina chinesa. Mas também não abriu um sorrisão. Fez cara de quem diz, melhor que nada, né? Em seguida, perguntou se eu costumava reagir bem quando tinha alguma doença, se eu tinha facilidade de responder à medicação e de me restabelecer. Ou seja, o que ele pareceu querer dizer, ou o que não conseguiu disfarçar para que eu não entendesse, é que, caso o resultado dê positivo para o vírus chinês, eu terei que contar muito mais com o meu bom e cada vez mais velho sistema imune do que com a vachina.
Hoje, segunda-feira, meu filho está com a temperatura normal desde manhã, o nariz já escorre menos e nem sente mais nada na garganta. Eu passei o dia todo com a temperatura entre 37,3º e 37,7º C, a coriza aumentou sensivelmente, a garganta não piorou nem melhorou e surgiu, ainda que muito esporadicamente, alguns espirros e tosse.
Os resultados dos exames saem em 48 horas. É aguardar.
Na melhor das hipóteses - a do exame dar negativo -, ganhei quatro dias de teletrabalho, longe do barulho e do cheiro da multidão; na hipótese intermediária, o exame dá positivo, os sintomas leves de uma gripinha não se agravam, eu me curo e ganho mais dez dias de teletrabalho (somando a necessária quarentena de 14 dias); na pior das hipóteses, serei aposentado; de tudo; em definitivo.

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