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Channel: A Marreta do Azarão
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Construindo o Cidadão Jeca Tatu

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Chegue para um engenheiro e diga-lhe : olha, não precisa se preocupar em cumprir com o prazo da obra, amanhã, mês que vem, daqui a dois anos, não há problema, cada obra tem suas peculiaridades, o seu tempo, devemos respeitar o ritmo de cada obra. Não dê, igualmente, tanta importância em seguir à risca o projeto da planta; se a edificação sair com dois ou três andares a menos, paciência, imprevistos acontecem, coisas da vida; se algum cômodo for esquecido de sua fiação, encanamento, ou mesmo de seu teto, distrações acontecem, errar é humano, também não há grandes inconvenientes, não se exaspere por tão pouco. E deixe de rigores extremos, liberte-se de cálculos e precisões opressoras, inflexíveis, tirânicas; uma infiltração aqui, uma rachadura ali, um desmoronamento acolá, são naturais percalços, vicissitudes do ofício.
Absurdo? Sandices? Surreal?
Pois é isso, exatamente isso, apenas trocando-se pelos jargões específicios da área, que é dito cotidianamente ao professor. Não apenas dito. Imposto.
Não se preocupe em cumprir  com o conteúdo de cada série, professor. Se o aluno não aprender a ler nesse ano, aprove-o, promova-o de série, ele aprenderá no ano que vem, no outro, ou no outro, cada aluno tem seu ritmo de aprendizado e devemos observá-lo para que não hajam traumas que bloqueiem para sempre seu processo cognitivo; idem para os rudimentos de ciências e matemática. O importante é ele estar na escola, socializando-se, construindo-se como um cidadão.
(E aqui não invento tampouco exagero; eu, em inícios de carreira, inocente, puro e besta, por algumas vezes fui "advertido" quanto à minha rigidez em querer cumprir com o conteúdo, que já é o minímo do mínimo. Não imaginam quantas vezes eu ouvi da boca de coordenadores que o conteúdo não é o mais importante. O que mais é, então, em uma escola?)
E deixe de rabugices e absolutismos, caro mestre. Deixe de cobrar que o aluno chegue no horário à sua aula, que ele esteja de uniforme, que ele traga o material e que realize as opressoras tarefas que são lhe são dadas, que ele tenha comportamento adequado; a escola é a continuação da casa do aluno, professor.
(De novo, não estou a carregar nas tintas; antes pelo contrário, até as diluo, até as pinto em aquarela ao invés de em densa pasta a óleo que lhe faria mais jus).
A Lei de Diretrizes e Bases do Ensino, a LDB, garante a entrada do aluno na escola e em sala de aula de maneira incondicional : se ele entra às 7h e chega, por exemplo, às 10h na escola, a escola é obrigada a deixá-lo entrar, ainda que nenhuma justificativa ele dê para o atraso; se ele chega sem uniforme, idem; sem material didático (que é lhe fornecido gratuitamente pelo Estado), ibidem. O aluno pode chegar às 10h na escola, de chinelos havaianas, bermuda verde, camiseta laranja fosforescente, boné, sem portar um único caderno ou caneta que seja : ele vai entrar.
E o que é que tem isso, professor? Ensiná-lo a ser responsável, disciplinado, compromissado com suas obrigações, para quê? De que servirá a ele responsabilidade e disciplina? Deixe de recalques, caro educador. Cada um tem o seu tempo para amadurecer. O importante é ele se sentir acolhido pela escola, sentir-se pertencente a um lugar, o importante é a inclusão social, é trabalhar a autoestima do educando, é construi-lo como cidadão.
Química, Física, Biologia, Literatura? Ora, professor, são meros detalhes, adereços, atávicos apêndices herdados da antiga escola - elitista e excludente-, insignificantes pretextos para a escola existir em seu objetivo maior : construir o cidadão.
Direcionar os temas de sua disciplina para o vestibular, professor? Onde o senhor pensa que está, numa escola? Deixe de arcaísmos e obsoletismos, professor, desvencilhe-se dos velhos ranços. Professor, construa o cidadão (irresponsável, indisciplinado, semianalfabeto), que ele, uma vez erigido, estará apto a trilhar com sucesso o caminho que bem escolher. É a escola-cidadã! A escola-cidadã é o discurso em voga nas últimas duas décadas, já a entrar na terceira. Construa o cidadão, professor!
Um cidadão com dois ou três andares a menos que a planta original, com algum cômodo esquecido de fiação e encanamento, marejado e mofado de infiltrações, com rachaduras e inevitavelmente sujeito a desmoronamentos. Paciência, professor, não se exaspere por tão pouco, dedicado mestre; são naturais percalços, vicissitudes da vida.
Que venha, pois, o Carnaval. Que é o único título que ainda nos resta : o país do carnaval. Título demeritório, é verdade, mas ainda um título; que, ao idiota, se for dito que ele é o rei dos idiotas, ele muito se alegrará, estufará o peito de orgulho, assumirá ares de fidalgo.
Fomos também, outrora, o país do futebol. O holocausto alemão dos 7 a 1 arrancou as chuteiras da pátria de chuteiras; e descalços, do glorioso amarelo-canarinho, restou-nos apenas o amarelão nacional, o da verminose, o do Jeca Tatu.

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